Em uma época em que mais de 170 leis federais norte-americanas diferenciavam direitos e deveres com base no gênero, uma jovem advogada ousou desafiar não apenas uma cláusula do sistema tributário, mas toda a lógica por trás de uma estrutura legal que naturaliza a desigualdade. Ruth Bader Ginsburg, então professora de Direito, viu no caso Moritz v. IRS uma brecha estratégica para iniciar algo muito maior: uma reforma cultural disfarçada de litígio técnico.
Entre Códigos e Culpas: A Base da Desigualdade
O caso de Charles Moritz parecia simples. Um homem solteiro que cuidava da mãe e teve negada a dedução fiscal que seria concedida se fosse mulher ou viúvo. No papel, uma disputa sobre impostos. Na essência, uma denúncia sobre o modo como o Estado definia papéis de gênero.
Ao lado do marido, o tributarista Martin Ginsburg, Ruth enxergou nesse caso a oportunidade de criar um precedente que desmontasse, aos poucos, a arquitetura legal da desigualdade. A argumentação era inovadora: ao discriminar homens, a lei também reforçava estereótipos que aprisionavam mulheres — e vice-versa.
Parceria Dentro e Fora do Tribunal
O filme Suprema (2018) retrata não apenas um momento-chave da história do direito nos Estados Unidos, mas também a dinâmica de uma parceria conjugal rara para a época. Marty e Ruth dividiam a vida doméstica, o cuidado com os filhos e o espaço intelectual — tudo em um momento histórico no qual até universidades como Harvard dificultavam a permanência de mulheres em seus cursos jurídicos.
Essa aliança afetiva e profissional foi fundamental para o sucesso da estratégia jurídica que daria início a uma transformação silenciosa, mas poderosa: a criação de jurisprudências que, somadas, reescrevessem o papel da mulher na sociedade.
O Julgamento Além do Caso
Com apoio da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) e a articulação do advogado Mel Wulf, o caso foi levado ao 10º Circuito. O resultado não apenas favoreceu Moritz, como também abriu as portas para o nascimento do Women’s Rights Project, projeto que usaria o próprio sistema jurídico como ferramenta de correção de suas falhas internas.
Essa metodologia de litígio estratégico viria a ser replicada em causas trabalhistas, familiares e até militares, num esforço coordenado de avançar uma pauta de justiça sem recorrer diretamente ao Legislativo — onde barreiras políticas e culturais ainda predominavam.
Leis mudam. Costumes Também.
O que o filme deixa claro é que transformar a lei nem sempre começa no Congresso. Às vezes, começa com alguém lendo uma negativa da Receita Federal e decidindo que aquilo não faz sentido. E é nesse pequeno gesto de inconformismo — amplificado por alianças e estratégias bem articuladas — que a mudança se anuncia.
Décadas depois, a figura de Ruth Bader Ginsburg se tornou símbolo não apenas de uma nova jurisprudência, mas de uma nova lógica social. Uma onde cuidar da casa ou do orçamento não define o que se pode ou não deduzir. Onde homens e mulheres são vistos como agentes igualmente capazes de prover, cuidar e decidir.
Lições para o Agora
O legado de Ruth não está só nas decisões que escreveu como juíza da Suprema Corte, mas nas que ela inspirou antes mesmo de vestir a toga. Suprema mostra como um único caso pode iluminar as frestas por onde se insere o debate por equidade — e como instituições, famílias e profissionais podem agir em rede para sustentar essa transformação.
Hoje, faculdades de direito replicam o modelo das clínicas jurídicas especializadas em gênero. Programas de mentoria buscam equilibrar a presença de mulheres no Judiciário. E cada vez mais tribunais se veem diante da tarefa de interpretar a lei sem repetir as desigualdades do passado.
No Fio da Justiça, Uma Nova Trama
Mais do que contar a história de uma mulher extraordinária, Suprema nos lembra que a Justiça é feita por mãos humanas — e que pode, sim, ser reescrita por quem acredita que regras existem para garantir equidade, não para reforçar privilégios. Ruth Bader Ginsburg não apenas venceu um caso. Ela inaugurou uma nova forma de disputar o futuro.