Lançado mundialmente no Festival de Toronto e distribuído pela Netflix em 2020, o longa se destacou por expor de forma crua as dinâmicas de poder, privilégio e sobrevivência que atravessam sociedades marcadas por profundas desigualdades. Em um tempo indefinido — mas assustadoramente familiar —, os personagens são aprisionados em uma torre de centenas de níveis, onde o único alimento disponível é o que sobra da mesa que vem de cima. E quando ela chega aos últimos andares, chega vazia, suja, desfigurada.
A torre como metáfora
Mais do que uma prisão, o chamado “Centro de Autogestão Vertical” funciona como alegoria de um sistema econômico em que poucos desfrutam do excesso enquanto muitos sobrevivem do resto. A arquitetura da torre — rígida, repetitiva e impessoal — reflete uma sociedade que organiza vidas a partir da altura de seus andares. Quanto mais acima, mais chances de saciar a fome; quanto mais abaixo, mais próxima da barbárie.
A cada mês, os presos são redistribuídos aleatoriamente entre os níveis. Essa rotação forçada é o que escancara a fragilidade da moral quando colocada sob o peso da escassez. A solidariedade se torna exceção, a violência se impõe como regra, e o medo de cair — metafórica e literalmente — reforça a passividade de quem se beneficia.
Os rostos do colapso
No centro da trama está Goreng (Iván Massagué), homem comum que entra voluntariamente no Poço, levando apenas um livro como companheiro. Seu olhar idealista é colocado à prova quando se depara com Trimagasi (Zorion Eguileor), veterano cínico que aprendeu a cortar a carne do outro para sobreviver. Ao longo do filme, surgem outras figuras emblemáticas: Baharat (Emilio Buale), que acredita na cooperação como chave para a salvação; Miharu (Alexandra Masangkay), mulher que vaga entre andares em busca de uma criança; e, acima de todos, uma Administração ausente, fria, que observa sem agir.
Cada personagem personifica uma resposta à escassez: resignação, fé, fúria, esperança. Nenhuma delas é plenamente eficaz, mas todas ajudam a compor o retrato de um experimento social onde o verdadeiro teste não é físico — é moral.
Da ficção à realidade
Embora ambientado em um cenário distópico, O Poço toca em questões dolorosamente reais. A fome, que atinge milhões ao redor do mundo, não é consequência da falta de comida, mas da sua má distribuição. O desperdício nas camadas mais altas da sociedade — literal ou figuradamente — tem efeitos devastadores nas camadas mais baixas. Assim como no filme, o excesso de uns alimenta a escassez de outros.
O longa também propõe uma reflexão sobre o consumo desenfreado, o papel das instituições que operam à distância e a possibilidade (ou impossibilidade) de reforma dentro de sistemas que naturalizam a exclusão. A criança encontrada nos níveis mais baixos é mais que um mistério narrativo — é símbolo da pergunta que ressoa até o fim: o sistema pode ser salvo, ou precisa ser destruído?
Uma mensagem que precisa subir
Entre cenas de brutalidade e momentos de esperança, O Poço sugere que a transformação começa quando cada indivíduo — cada “nível” — decide agir com consciência, mesmo diante do medo, da fome e da incerteza. Quando Goreng e Baharat tentam distribuir a comida de forma justa, enfrentam resistência não apenas de cima, mas também de baixo. O problema não é só quem detém o poder — é quem o aceita como natural.
Talvez por isso a criança seja enviada como mensagem. Porque ela representa o que ainda não foi corrompido. E porque talvez só a inocência — ou o desejo sincero de mudança — consiga subir até onde os discursos racionais fracassaram.
Reflexão final
O Poço não oferece uma saída clara, mas grita com contundência: o problema não é a escassez, é o egoísmo. Enquanto cada um devorar mais do que precisa, o fundo seguirá morrendo de fome. A sobrevivência coletiva depende da renúncia individual. E o topo, por mais alto que esteja, também desaba quando a base apodrece.