“Ela foi a primeira norte-americana a acertar um triple axel — mas nunca pôde escapar do golpe que não aplicou.”
A frase que abre o filme Eu, Tonya resume o paradoxo cruel vivido por Tonya Harding: uma atleta que alcançou feitos históricos, mas que viu sua imagem ser desfeita com a mesma rapidez com que brilhou nas pistas de gelo. A produção dirigida por Craig Gillespie mergulha no escândalo que marcou os Jogos de Inverno de 1994, quando a rival de Tonya, Nancy Kerrigan, foi atacada a mando de pessoas ligadas ao entorno da protagonista. Embora nunca tenha sido comprovado seu envolvimento direto, Harding foi condenada à execração pública.
Quando o talento é menos vistoso que o figurino
Desde a infância em Portland, no estado do Oregon, Tonya enfrentou uma realidade muito distante da imagem comumente associada às princesas do gelo: morava em trailer, costurava próprios figurinos e foi treinada sob gritos e tapas da mãe, LaVona Golden (vivida por Allison Janney em performance premiada com o Oscar). Em um esporte onde a leveza e o refinamento visual são quase tão importantes quanto a execução técnica, Harding se destacava mais pela potência do salto do que pela suavidade do estilo.
As notas dos juízes, invariavelmente mais baixas do que a performance merecia, revelam um sistema que não reconhece apenas o que se faz na pista, mas quem o faz — e como se apresenta.
Violência que não se vê
No centro da narrativa, está o ciclo de violência que atravessa a vida de Tonya: da infância marcada por agressões maternas à juventude dominada pelo relacionamento abusivo com Jeff Gillooly, ex-marido e figura central na armação contra Kerrigan. A violência, aqui, não é apenas física, mas também simbólica: um ambiente social que tolhe, cobra, julga e raramente protege.
Harding treinava como campeã, mas vivia sem apoio ou suporte emocional. O resultado? Uma atleta que alcançava marcas históricas e, ao mesmo tempo, parecia carregar nas costas o peso de um mundo que não a queria onde estava.
Manchetes que condenam
A cobertura da mídia à época do escândalo transformou um drama pessoal em novela global. Tonya virou vilã sem julgamento justo, enquanto o público consumia manchetes em busca de mocinhas e monstros.
O filme explicita o quanto a narrativa única — uma versão hegemônica dos fatos, montada para entreter — pode silenciar complexidades e transformar vítimas em culpados. Kerrigan, a patinadora agredida, pouco aparece na trama: não por irrelevância, mas por ser também parte de uma engrenagem que consome pessoas para alimentar espectáculos.
Quem decide quem pode vencer?
Eu, Tonya levanta uma questão incômoda: por que certos corpos, origens e estilos são sistematicamente deslegitimados em arenas que deveriam valorizar apenas o desempenho? A resposta não está apenas nas pistas de gelo, mas também nos bastidores da sociedade.
A mesma mão que aplaude, pode apontar e punir. A mesma vitrine que celebra, também devora. O caso Harding expõe como, em nome de padrões de comportamento e aparência, somos capazes de anular trajetórias inteiras.
Entre a glória e o esquecimento
Tonya Harding foi a primeira mulher dos Estados Unidos a executar um triple axel em competição oficial. Um feito que deveria garantir seu lugar na história do esporte. Mas por muito tempo, seu nome foi lembrado apenas como sinônimo de escândalo.
O filme de Gillespie, ao recuperar essa história com um olhar mais empático e multifacetado, contribui para uma discussão urgente sobre como tratamos nossos ídolos, como julgamos mulheres em posição de destaque, e como somos rápidos em condenar antes de compreender.