“Quando tudo some no nevoeiro, a bússola nasce dentro de nós.”
A frase, que abre o longa A Espera de Liz, revela mais do que o tom contemplativo do filme: oferece uma pista sobre a delicada costura entre dor, descoberta e renovação. Lançado em 2022 pela Pandora Filmes, o drama psicológico dirigido por Bruno Torres e Simone Iliescu apresenta uma jornada íntima de luto e revelação ambientada em um dos cenários mais extremos da América do Sul – o Monte Roraima – e gravada sob um rigoroso compromisso ambiental.
Um vazio no nevoeiro: luto, silêncio e reconexão
Liz, interpretada com delicadeza por Simone Iliescu, vê sua vida ruir quando o companheiro Miguel (Bruno Torres) desaparece sem deixar vestígios. O que poderia ser uma história de mistério convencional se transforma em algo mais profundo: uma descida ao abismo da ausência e ao reencontro com o próprio eixo emocional. É Lara, irmã e confidente vivida por Rosanne Mulholland, quem aparece como âncora – ou catalisadora – de uma série de verdades que Liz precisará encarar para se reconstruir.
Mais do que um filme sobre perda, A Espera de Liz trata do que nasce no espaço deixado pela ausência. Há, ao longo dos 99 minutos de duração, um cuidadoso mergulho na relação entre irmãs, onde o afeto e os segredos amadurecem juntos. Nesse entrelaçamento, o filme aborda com sensibilidade a potência da escuta, do cuidado mútuo e da reconstrução da identidade feminina longe das expectativas impostas por vínculos amorosos interrompidos.
Um filme de alturas: do Monte Roraima à resiliência silenciosa
Rodado entre Gramado (RS) e o topo do Monte Roraima – na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana –, o longa aproveita o cenário agreste e coberto por névoa como extensão emocional de sua protagonista. A solidão da paisagem reflete o silêncio interno de Liz, enquanto o percurso até o alto da montanha reforça o simbolismo da travessia do luto à reinvenção. Não por acaso, o Roraima funciona quase como um quarto personagem: impassível, antigo, testemunha do tempo e das transformações.
Atrás das câmeras, uma nova lógica de produção
O que torna A Espera de Liz ainda mais relevante, no entanto, é o que se passa além do quadro. Com orçamento modesto de R$ 1,6 milhão, o projeto tornou-se o primeiro filme brasileiro a neutralizar integralmente suas emissões de gases de efeito estufa. Foram 16,9 toneladas de CO₂ compensadas por meio do plantio de 130 árvores em áreas de reflorestamento, com certificação da plataforma Ecooar. Um feito raro mesmo em produções internacionais de grande escala.
Mas a inovação não para na pauta climática. Em um setor ainda marcado pela desigualdade de gênero, o longa também se destaca pela estrutura de equipe: 59% dos cargos de chefia foram ocupados por mulheres, indicando uma virada silenciosa – e eficaz – nos bastidores da produção nacional.
Do íntimo ao coletivo: o que permanece após o fade out
Ao reunir uma narrativa densa com práticas responsáveis de produção, A Espera de Liz aponta caminhos possíveis para o audiovisual brasileiro. Sem recorrer a discursos panfletários, o filme encarna valores contemporâneos de equidade, bem-estar e consciência ecológica. Cada decisão criativa – do elenco enxuto à escolha de locações e à pegada ambiental compensada – revela que é possível fazer cinema de impacto sem deixar rastros negativos.
Finalista em quatro categorias no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2023, a obra ainda gerou desdobramentos educativos, como debates sobre produções de baixo impacto e oficinas sobre narrativas ligadas ao luto e ao reencontro.
Entre o céu e a terra, um convite à escuta
“Ao escalar o Roraima, Liz não foge – ela sobe para ouvir o que ficou calado em si.” Essa talvez seja a síntese do longa: uma ode à escuta profunda, à paciência de esperar pelo que não se entende de imediato, e à responsabilidade de se mover no mundo com leveza – emocional, afetiva e ambiental.
A Espera de Liz é mais do que um filme. É uma bússola delicada que aponta para um futuro onde contar histórias também significa cuidar do solo onde elas são contadas.