Do cartel mexicano à máfia italiana, passando por empresários norte-americanos, a série revela como a cocaína move um sistema global de poder, corrupção e morte.
O tráfico como engrenagem global
“O tráfico não é apenas crime – é mercado. E como todo mercado, tem regras, rotas e jogadores.” Essa ideia conduz a narrativa de ZeroZeroZero (2020), minissérie dirigida por Stefano Sollima e baseada no livro de Roberto Saviano, autor de Gomorra. Com uma estrutura narrativa ousada e estética crua, a produção transforma o narcotráfico em um estudo geopolítico sobre como droga, violência, capital e logística formam um sistema interdependente e lucrativo. Ao acompanhar o percurso de uma única remessa de cocaína, a série conecta três continentes e revela como o crime organizado opera como uma multinacional: com hierarquias, alianças, contratos, riscos calculados e uma cadeia de suprimentos própria.
Três núcleos, um sistema
A série se divide em três núcleos narrativos interligados por uma mesma mercadoria: a carga de cocaína. No México, conhecemos o cartel liderado por Manuel, um ex-militar que transforma táticas de guerra em terror logístico. Na Calábria, sul da Itália, a máfia ‘Ndrangheta enfrenta disputas familiares e éticas sobre o controle da carga e de poder. Já em Nova Orleans, nos Estados Unidos, a família Lynwood mantém um negócio de transporte marítimo aparentemente legal, mas profundamente entrelaçado ao submundo do tráfico.
Esses três mundos, tão distintos, se revelam peças de um mesmo tabuleiro. A cocaína, que nunca aparece diretamente, é o catalisador de decisões, traições e mortes. Mais do que uma substância ilícita, ela é símbolo de poder, moeda de troca e justificativa para a brutalidade.
Estética realista e imersão total
Com locações reais filmadas no México, Itália, Estados Unidos, Senegal e Marrocos, ZeroZeroZero tem uma linguagem quase documental. A câmera captura a aridez do deserto mexicano, a decadência urbana da Calábria e os ambientes corporativos dos EUA com o mesmo grau de dureza. A fotografia é fria, a trilha sonora da banda Mogwai é minimalista, e a montagem não-linear costura as três narrativas de forma tensa e implacável.
Não há alívio cômico ou heroísmo fácil. Cada episódio é uma descida aos porões do sistema que sustenta e se alimenta do tráfico internacional de drogas.
Entre negócios e moralidade
Um dos grandes méritos da série é fugir da dicotomia bem versus mal. Todos os personagens, de alguma forma, estão implicados em dilemas morais. A família Lynwood, por exemplo, administra um império de fachada legal que financia o tráfico. Seus integrantes oscilam entre cumplicidade, pragmatismo e negação. A série deixa claro que o tráfico não sobrevive apenas com bandidos armados mas com empresários, políticos e sistemas legais que fecham os olhos ou estendem as mãos.
Essa abordagem se conecta diretamente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), ao mostrar como governos, forças policiais e até sistemas bancários são partes muitas vezes ativas dessa cadeia.
Reflexo de um sistema desigual
ZeroZeroZero também evidencia como os impactos do narcotráfico recaem desproporcionalmente sobre os mais vulneráveis. Comunidades pobres nos países produtores vivem sob domínio armado, enquanto os lucros são concentrados nas mãos de mafiosos e empresários. A série denuncia esse abismo estrutural, alinhando-se aos ODS 10 (Redução das Desigualdades) e 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico), ao mostrar como até mesmo o trabalho “legal” pode estar contaminado por economias ilícitas.
Um thriller sobre o que está por trás do lucro
Com apenas oito episódios, a minissérie oferece uma experiência intensa, mas também esclarecedora. O tráfico de drogas deixa de ser tratado como uma guerra de gangues para se tornar o que realmente é: um sistema logístico altamente eficiente, cruel e transnacional.
Ao final, o espectador se vê diante de uma constatação perturbadora: o problema do tráfico não está apenas nos morros, nas fronteiras ou nas rotas marítimas. Ele está também nos escritórios, nos portos, nas reuniões de conselho. A droga pode nem aparecer na tela mas seus efeitos, seus rastros e seu lucro movem o mundo.