Na distopia brasileira de Pedro Aguilera, um mundo vigiado por drones promete segurança, mas sacrifica intimidade, justiça e liberdade em nome de um controle que não pode ser questionado. Onisciente resume a inquietação central desta ficção científica brasileira: será possível automatizar a justiça sem apagar a humanidade? Criada por Pedro Aguilera (de 3%), a produção da Netflix mistura estética high-tech, crítica social e drama investigativo para examinar os limites éticos de um sistema que tudo vê — e decide por nós.
O olhar que nunca dorme
No universo de Onisciente, cada pessoa é monitorada 24 horas por dia por um drone pessoal. Esses dispositivos, silenciosos e impessoais, pairam como extensões de um Estado corporativo que promete segurança total. Mas quem controla as câmeras? E o que acontece quando uma delas falha?
A narrativa acompanha Nina Peixoto (Carla Salle), funcionária da própria empresa responsável pelo sistema de vigilância, que se torna hacker e investigadora após a morte misteriosa de seu pai — um assassinato que, em tese, não poderia ter acontecido. A partir daí, a série revela as fissuras de um mundo em que a privacidade foi trocada por tranquilidade, mas a violência continua — apenas mais invisível.
Segurança, sim. Liberdade, talvez.
O pacto da sociedade com o Sistema Onisciente é claro: em troca de paz, abre-se mão da intimidade. A vigilância constante é naturalizada, incorporada à rotina, tratada como progresso. Mas há um preço. A liberdade se torna uma concessão, não um direito.
As implicações éticas se acumulam. A série tensiona a linha tênue entre proteção e opressão, entre transparência e exposição, entre justiça e punição automatizada. Ao confiar decisões a algoritmos supostamente neutros, o sistema retira dos indivíduos o poder de contestar, explicar ou sentir. O erro humano é substituído pela infalibilidade maquínica — que, quando falha, não tem a quem prestar contas.
Quando o algoritmo decide o que é justo
Ao tematizar uma justiça automatizada, Onisciente lança luz sobre a crescente tecnopolítica da vigilância. A série propõe um sistema em que não há juízes, advogados ou testemunhas — apenas dados. O resultado é uma justiça que elimina a subjetividade em nome da eficiência, mas que também apaga contextos, afetos e contradições.
Em episódios que revelam bugs, sabotagens e lacunas, Nina percebe que a perfeição do sistema é apenas aparente. A ausência de crime não significa ausência de violência — apenas uma mudança de forma. O silêncio pode esconder tanto quanto um grito.
Laços familiares em um mundo sem segredos
Mesmo em uma sociedade controlada, as relações humanas escapam ao monitoramento. Nina é impulsionada pelo luto, pela dúvida e pelo amor — afetos que nenhum algoritmo compreende. Seu irmão Daniel (Guilherme Prates) vive o dilema entre seguir as regras e apoiar a rebeldia da irmã. Já Judite (Sandra Corveloni), diretora da empresa, representa a frieza institucional: não importa o que é certo, mas o que é eficiente.
Esses embates familiares adicionam camadas emocionais à série, contrapondo o cálculo maquínico ao drama humano. A vigilância constante não elimina a dor, o medo ou a esperança. Pelo contrário, os intensifica — só que agora vigiados.
Drones, câmeras e o espelho do nosso tempo
A estética de Onisciente é parte da narrativa. Paletas frias, arquitetura minimalista, enquadramentos estáticos e a presença constante de drones criam uma sensação de distanciamento e opressão silenciosa. O visual asséptico reforça a ideia de que tudo está sob controle — ou deveria estar.
Mas a série é menos sobre o futuro e mais sobre o presente. O mundo retratado não está distante: já vivemos sob múltiplas formas de rastreamento, algoritmos que moldam comportamentos e decisões preditivas feitas sem consulta. O que Onisciente faz é escancarar esse cotidiano naturalizado e levá-lo ao extremo, para que possamos, finalmente, estranhá-lo.
Um sci-fi brasileiro com alcance global
Lançada globalmente em 2020, a série é uma das primeiras ficções científicas brasileiras distribuídas pela Netflix com dublagem e legendas em dezenas de idiomas. A recepção foi mista: críticos elogiaram a premissa e a ousadia temática, mas apontaram falhas no ritmo e na construção de personagens.
Ainda assim, o impacto cultural é notável. Onisciente prova que o Brasil pode produzir sci-fi de qualidade, abordando questões locais — desigualdade, vigilância policial, elitismo tecnológico — com linguagem universal. Um futuro distópico que começa, ironicamente, muito perto do agora.