Quando o jovem médico escocês Nicholas Garrigan desembarca na Uganda recém-independente, o que busca é uma aventura. Deseja escapar da previsibilidade do hospital britânico, viver algo exótico, novo, intenso. E encontra exatamente isso — pelo menos nos primeiros dias. Idi Amin, o presidente que acaba de tomar o poder, é tudo o que Garrigan não imaginava encontrar em um governante: engraçado, afetuoso, direto. Um líder do povo.
Mas a aparência engana. E o que era fascínio logo se torna assombro.
Um rei fabricado a golpes
Dirigido por Kevin Macdonald e baseado no romance de Giles Foden, O Último Rei da Escócia (2006) reconstrói com vigor dramático o regime de Idi Amin, que governou Uganda entre 1971 e 1979. Através da lente de Garrigan (James McAvoy), o filme nos conduz do deslumbramento à repulsa, enquanto acompanhamos a escalada de violência que transformou o líder em um dos ditadores mais temidos da história africana.
Com performance premiada com o Oscar, Forest Whitaker encarna Amin como um enigma: ora paternal, ora explosivo, sempre imprevisível. Seu poder não se sustenta apenas por tanques ou fuzis — mas pelo afeto forjado, pela teatralidade, pelo medo convertido em normalidade.
Quando o bisturi vira arma
Ao tornar-se médico pessoal do presidente, Garrigan atravessa uma fronteira perigosa: deixa de ser observador e passa a ser cúmplice. O bisturi, que deveria curar, passa a esconder. A medicina, que deveria proteger, se transforma em escudo para uma máquina de tortura.
Mais do que um thriller político, o filme provoca uma pergunta desconfortável: qual é o limite entre servir e colaborar? Quando o profissionalismo se torna conivência? E, principalmente, o que leva tantos estrangeiros a romantizar líderes autoritários em nome de uma suposta “autenticidade”?
A ilusão do olhar estrangeiro
O Último Rei da Escócia nunca esconde que seu protagonista é um forasteiro. Garrigan vê tudo com olhos ocidentais: a cultura local como folclore, a violência como acidente, o poder como espetáculo. Sua trajetória não é apenas individual, mas simbólica. Representa uma certa postura histórica do Norte global diante do Sul: curiosidade superficial, intervenção tardia, e muitas vezes, fuga diante do caos que ajudou a construir.
Nesse sentido, o filme acerta ao não poupar seu personagem central — mas também ao sugerir que sua cegueira não é apenas pessoal, e sim geopolítica.
Violência, gênero e silenciamento
Na figura de Kay Amin (Kerry Washington), terceira esposa do presidente, o longa tangencia outra ferida profunda: a violência de gênero institucionalizada em regimes autoritários. Kay é silenciada, usada, descartada. Sua tragédia não é exceção, mas parte de um padrão que se repete em tantos contextos de repressão política.
O mesmo vale para os desaparecidos, os perseguidos, os mutilados pelo medo. Uganda, no filme, é um corpo marcado por feridas abertas. Mas também por resistência silenciosa — que ressurge, por exemplo, na figura da médica Sarah Merrit (Gillian Anderson), uma das poucas vozes que tenta alertar Garrigan antes do desastre completo.
Ecos de um passado ainda presente
Embora ambientado nos anos 1970, O Último Rei da Escócia é incômodo porque ainda dialoga com o presente. O culto à personalidade, a manipulação midiática, a conversão do carisma em mecanismo de poder continuam ativos em várias partes do mundo.
A estrutura do filme, que mistura ficção e fatos históricos, serve como lembrete: regimes autoritários não nascem apenas de tanques — mas de encantamento. Não se sustentam apenas pela força — mas pela omissão. E, muitas vezes, encontram apoio justamente naqueles que acreditam estar apenas “ajudando”.