Após a morte da mãe durante a guerra, Mahito muda-se para o campo e, ao seguir uma garça até uma torre antiga, adentra um mundo fantástico de vivos e mortos — descobrindo ali segredos sobre si mesmo e o poder da fé.
“Quando o visível é apenas metade do mundo, a outra metade é guiada pela fé que pulsa em nós.”
Em seu retorno ao cinema após uma década de silêncio, Hayao Miyazaki entrega mais do que uma animação: apresenta uma elegia animada sobre perda, coragem e transcendência. O Menino e a Garça, vencedor do Oscar de Melhor Animação, surge como uma síntese profunda dos temas que atravessam a carreira do diretor — a infância como território de revelação, a natureza como força viva e o luto como um portal de transformação.
Inspirado livremente no romance How Do You Live? (1937), de Genzaburō Yoshino, o filme percorre o pós-guerra japonês com olhos infantis e alma ancestral. Ao seguir uma garça falante até um mundo oculto, Mahito — o protagonista — reencontra fragmentos de memória, reconfigura afetos e aprende que a fé, mais do que uma crença, é uma travessia interior.
A travessia entre mundos
Mahito perde a mãe em um incêndio hospitalar durante a Segunda Guerra. Deslocado para o interior com o pai, passa a viver numa casa cercada de silêncio, onde o tempo parece diluir-se entre o real e o onírico. É nesse cenário que encontra a garça-cinza — figura ambígua, ora guia, ora enigma — e a misteriosa torre, portal para uma realidade paralela.
Neste outro mundo, onde os mortos convivem com criaturas mágicas e o tempo flui com lógica própria, Mahito é confrontado por versões distorcidas de sua dor. Cada encontro — com uma idosa de mil rostos, aves que carregam almas, ou a “mãe substituta” que o habita — conduz o menino a compreender que fugir do luto é permanecer prisioneiro dele. E que fé não é certeza: é decisão de continuar, mesmo na ausência de respostas.
Estética híbrida e imersão sensorial
A beleza de O Menino e a Garça não está apenas na narrativa, mas na forma como ela é contada. Combinando técnicas tradicionais de pintura à mão com elementos de animação digital, o Studio Ghibli constrói um universo visual onde tudo vibra em textura, cor e detalhe. A água tem densidade, a luz pulsa com ritmo próprio e cada cenário parece respirar.
Essa fusão entre o antigo e o novo ecoa o próprio enredo: o confronto entre heranças do passado e urgências do presente. Mais do que estilo, a estética é linguagem emocional. O espectador não apenas vê — ele sente. Como Mahito, somos conduzidos não por mapas, mas por intuições visuais e sonoras, guiados pela trilha delicada de Joe Hisaishi.
Símbolos de fé e identidade
Em Miyazaki, nada é gratuito. A garça, figura central do título, é símbolo da passagem entre mundos, do sagrado que habita o cotidiano. A torre, com sua arquitetura impossível, remete tanto à verticalidade espiritual quanto à clausura do trauma. E a água — presente em rios, lagos, chuvas e lágrimas — representa fluxo, purificação e renascimento.
O filme não oferece respostas fáceis. Cada símbolo é polissêmico, aberto à interpretação. Mas o que emerge, com clareza lírica, é a certeza de que amadurecer é aceitar os mistérios. Mahito retorna ao campo transformado não porque entendeu tudo, mas porque sentiu. E, nesse sentir, reconciliou-se com o que foi, com o que perdeu e com o que ainda virá.
Um testamento espiritual
Ao se despedir do cinema — ao menos por ora —, Miyazaki entrega sua obra mais introspectiva e filosófica. O Menino e a Garça não busca impactar pela grandiosidade, mas tocar pelo sutil: um gesto, um silêncio, um olhar perdido no horizonte. É uma narrativa que honra a infância não como fase, mas como dimensão espiritual.
Mais do que falar sobre luto, o filme o atravessa. Mais do que propor uma aventura fantástica, convida à escuta do invisível — aquilo que não se vê, mas move. Em tempos de hiperexplicação, Miyazaki nos lembra que a imaginação pode ser ferramenta de cura, e que há verdades que só o silêncio revela.
O Menino e a Garça é, em essência, um rito de passagem. Entre guerra e paz, infância e maturidade, vida e morte, Mahito encontra algo que nenhuma explicação racional pode oferecer: sentido. Ao fim da jornada, ele volta ao mundo comum — mas já não é o mesmo. E nós, espectadores, também não.
Porque em cada perda há um chamado. E em cada fé, um retorno ao que realmente importa: lembrar que não estamos sozinhos, mesmo quando tudo parece ruir.