O Mauritano (2021), dirigido por Kevin Macdonald, resgata um dos casos mais perturbadores da chamada “guerra ao terror”: a detenção ilegal e prolongada de um homem sem acusação formal, sob o pretexto de segurança nacional.
A história real retratada na obra escancara não apenas a brutalidade do cárcere em Guantánamo, mas também o abismo ético em que instituições podem mergulhar quando os direitos fundamentais são tratados como obstáculos — e não como princípios.
Prisão sem rosto, justiça sem nome
Preso em 2002 e libertado apenas em 2016, Mohamedou Slahi passou 14 anos em Guantánamo sem jamais ser julgado. Acusado de ligação com os ataques de 11 de Setembro, ele foi submetido a um regime de isolamento, humilhações físicas e psicológicas e longos interrogatórios violentos. Não havia sentença. Não havia provas.
O filme expõe esse vácuo legal, em que a lógica do “inimigo presumido” substitui qualquer garantia jurídica. Guantánamo é retratada como um espaço fora do mundo, onde a exceção é regra e o corpo do detido se torna terreno de experimentação institucional.
A defesa como resistência
Na outra ponta da narrativa está Nancy Hollander (Jodie Foster), advogada criminalista que decide assumir a defesa de Slahi — não por convicção de inocência, mas por fidelidade à lei. Sua postura firme e racional é, ao mesmo tempo, contracorrente e profundamente simbólica: mesmo o suposto inimigo merece ser ouvido. E ser julgado com base em fatos, não em fantasmas.
Ao seu lado, a jovem assistente jurídica Teri Duncan (Shailene Woodley) representa o olhar idealista que insiste em acreditar que o sistema pode — e deve — se corrigir. O embate com o promotor militar, interpretado por Benedict Cumberbatch, amplia o debate entre dever patriótico e justiça real.
Entre a tortura e a fé
Interpretado com intensidade por Tahar Rahim, Slahi não é retratado apenas como vítima, mas como alguém que resiste por dentro. Seus escritos, sua fé, seu senso de humor e humanidade escapam das grades, tornando-o mais do que um símbolo: um ser humano.
O impacto psicológico das práticas de tortura institucionalizadas, a negação do direito de defesa e os anos roubados de vida expõem o preço pago por quem cai nas malhas de um sistema que, em nome da segurança, abandona seus próprios princípios.
Quando a exceção vira regra
O Mauritano vai além da denúncia. Ele provoca o espectador a refletir sobre os limites do poder estatal, sobre o uso político do medo, sobre os riscos de se permitir zonas jurídicas de exceção. O filme também honra os profissionais que insistem na legalidade mesmo quando ela parece impotente. Porque, como Nancy afirma em um dos momentos mais marcantes: “O direito não serve apenas aos inocentes. Ele serve a todos — ou não serve a ninguém.”