“Dopesick é um retrato duro e contundente da ganância e da perversidade desmedida de algumas pessoas da indústria farmacêutica.” A frase, publicada pela VEJA Rio, resume o cerne desta produção baseada em fatos reais.
Lançada em 2021, a minissérie dramatiza o impacto do OxyContin — analgésico altamente viciante — em comunidades estadunidenses, e revela os mecanismos de poder, omissão e negligência que permitiram a proliferação de uma das maiores crises de saúde pública do século XXI.
O começo do colapso
Situada entre os anos 1990 e 2000, Dopesick acompanha o surgimento da epidemia de opioides nos Estados Unidos, a partir da introdução no mercado do OxyContin. O que começa como uma promessa de alívio para dores crônicas se transforma, gradualmente, em uma tragédia de grandes proporções.
A série articula múltiplas narrativas: médicos pressionados, jovens vítimas, promotores federais, agentes do governo e executivos farmacêuticos. Essa pluralidade revela não só o drama humano por trás das estatísticas, mas também o emaranhado de interesses que manteve o ciclo da dependência ativo — mesmo diante de alertas contundentes.
Quando o lucro é mais forte que o juramento
O epicentro da série é a atuação da Purdue Pharma, liderada por Richard Sackler (vivido por Michael Stuhlbarg), cuja estratégia de marketing agressiva promoveu o OxyContin como uma solução segura e inovadora. Médicos como o Dr. Samuel Finnix (Michael Keaton) foram convencidos de sua eficácia e segurança — até que os efeitos colaterais se tornaram impossíveis de ignorar.
Dopesick não demoniza a medicina, mas questiona os limites éticos de sua instrumentalização. A linha entre tratamento e vício é manipulada por campanhas publicitárias, bônus de vendas e dados enviesados. O juramento hipocrático cede espaço ao balanço corporativo.
Vidas descartáveis, lucros garantidos
Em meio ao colapso, a série dá voz às vítimas. Betsy Mallum (Kaitlyn Dever), jovem mineradora em recuperação de uma lesão, se torna dependente após ser medicada com OxyContin. Sua trajetória encapsula o drama de milhares: vidas comuns, vulneráveis e invisibilizadas pelo sistema.
A epidemia não atinge todas as regiões da mesma forma. Comunidades de baixa renda, muitas delas dependentes da indústria mineradora, tornaram-se alvos preferenciais. A combinação entre dor física, desemprego e negligência institucional criou o terreno fértil para uma tragédia silenciosa — e altamente lucrativa para alguns.
O Estado em silêncio
Paralelamente, promotores como Rick Mountcastle (Peter Sarsgaard) e agentes como Bridget Meyer (Rosario Dawson) enfrentam uma luta solitária contra um sistema lento e muitas vezes conivente. Órgãos reguladores que deveriam proteger a população vacilam diante do poder econômico de grandes corporações.
A crítica da série recai sobre as falhas de fiscalização, o excesso de burocracia e os acordos judiciais que impedem reparações efetivas. Justiça, nesse contexto, torna-se uma promessa tardia — e, para muitos, inalcançável.
Estética sombria, denúncia clara
Com direção precisa e ambientação realista, Dopesick conduz o espectador do interior operário às salas de reunião em Washington. A fotografia fria e os cenários áridos espelham o estado emocional de uma sociedade esgarçada pela dor e pela impunidade.
A linguagem visual enfatiza os contrastes: enquanto comunidades inteiras colapsam sob a dependência química, os responsáveis pela crise seguem em edifícios de mármore, imunes às consequências de suas decisões. A encenação é dura, mas necessária: não se trata de entretenimento leve, mas de uma denúncia contundente.
Um retrato necessário, uma ferida aberta
Vencedora de prêmios como o Emmy e o Globo de Ouro para Michael Keaton, Dopesick vai além do melodrama. A série constrói um mosaico de responsabilidades, mostrando que a crise dos opioides não foi um acidente, mas o resultado de escolhas — empresariais, políticas e médicas — tomadas com cálculo e conveniência.
Ainda que ambientada nos Estados Unidos, a produção ressoa globalmente. O desequilíbrio entre lucro e bem-estar, o enfraquecimento de regulações, e a negligência institucional são desafios que ultrapassam fronteiras. Dopesick funciona como alerta: quando o sofrimento é rentável, quem decide o que é cura?