Lançada em 2017, Anne with an E não se contenta em revisitar os livros de Lucy Maud Montgomery com fidelidade visual. Sob direção de Moira Walley-Beckett, a série expande os horizontes de Green Gables ao incluir pautas sociais urgentes — e o faz sem perder a doçura, a força literária e o encantamento pastoral que consagraram sua personagem-título.
Anne Shirley: a imaginação como escudo e espada
Em um tempo e lugar marcados por regras rígidas, Anne Shirley-Cuthbert não apenas sobrevive — ela reinventa. A condição de órfã, marcada por traumas e rejeições, se transforma em combustível para uma imaginação vívida que colore as paisagens da Ilha do Príncipe Eduardo com tons de esperança e poesia.
Mais do que uma fuga, a imaginação torna-se um gesto político. Anne não apenas sonha: ela contesta. Questiona regras, desafia costumes e constrói pontes entre o que é e o que poderia ser. Em um mundo ainda dividido por etiquetas sociais e normas imutáveis, essa criatividade feroz se revela uma das formas mais potentes de resistência.
Da dor ao pertencimento: a jornada de quem aprende a ser acolhido
O passado de Anne não é apagado — ele é enfrentado. Episódios de negligência, bullying e abuso são abordados com sensibilidade, mas também com firmeza, lembrando que histórias de superação exigem coragem, mas também redes de apoio reais.
Ao lado dos Cuthbert e da comunidade de Avonlea, Anne encontra um lar — mas não sem antes confrontar seus próprios traumas e ensinar os outros a ver além das aparências. A série acerta ao não romantizar o sofrimento, transformando-o em um processo contínuo de aprendizado coletivo sobre escuta, empatia e reconstrução.
Feminismo entre rendas e xícaras de chá
Anne e suas amigas — Diana Barry, Josie Pye, Miss Stacy — ampliam a conversa sobre o que significa ser mulher em uma sociedade vitoriana. O enredo propõe discussões sobre direitos educacionais, trabalho, liberdade de expressão e equidade de gênero sem anacronismos forçados, mas com a convicção de que essas pautas sempre existiram, ainda que silenciadas.
A presença de educadoras progressistas e de jovens que sonham com universidades e votos femininos expande o universo da série para além das tramas românticas. Há, aqui, uma valorização da autonomia e da sororidade que convida espectadoras — e espectadores — a refletirem sobre o legado das conquistas sociais e os desafios que persistem.
Inclusão que atravessa o século: diversidade racial, indígena e sexual
Ao introduzir personagens como Ka’kwet, criança da etnia Mi’kmaq retirada à força para uma escola residencial, a série toca em uma das feridas abertas da história canadense: o apagamento de culturas originárias por instituições estatais. A dor da separação familiar e a resistência identitária da jovem indígena ecoam com força nas tramas paralelas.
Além disso, Anne with an E aborda questões de raça, preconceito social e diversidade sexual com delicadeza, dando voz a personagens como Cole — artista sensível que enfrenta bullying e se descobre queer — e Bash, afrodescendente que lida com o racismo estrutural ao construir família com Gilbert. Esses enredos não desviam da trama central: eles a aprofundam, tornando Avonlea mais plural e mais próxima do mundo real.
Estética como narrativa: luz, cor e paisagem no drama interior
A fotografia de Anne with an E é mais do que bela — ela comunica. Tons dourados, planos abertos e uso simbólico das estações refletem estados emocionais dos personagens e criam uma ambiência de sonho, ruptura e renascimento. A trilha sonora, com destaque para The Tragically Hip, ajuda a construir uma ponte entre passado e presente.
Cada cena parece ter sido composta para expressar algo além do diálogo: a solidão em uma estrada de terra, a ternura em um jardim florido, o medo em corredores silenciosos. Esse cuidado estético transforma a série em uma obra visualmente literária, em que a natureza dialoga com os conflitos internos e as conquistas afetivas dos personagens.
De sala de aula a petições: os desdobramentos fora da tela
Mesmo após seu cancelamento em 2019, Anne with an E continua mobilizando fãs e educadores. Petições internacionais pedindo a renovação da série ainda circulam, algumas com milhões de assinaturas. Em escolas de diversos países, episódios são usados para fomentar debates sobre gênero, colonialismo, identidade e liberdade de expressão.
Essa ressonância além do entretenimento sugere que a série tocou algo essencial: o desejo por histórias que celebrem a diferença, acolham a vulnerabilidade e inspirem transformação. Ao propor discussões profundas com linguagem acessível, Anne with an E aproxima o público jovem de temas densos sem perder o encantamento.
O legado de Anne: um “E” que continua a ecoar
Anne Shirley, com seu nome estendido por um “E”, não quer ser confundida — ela quer ser reconhecida por inteiro. E talvez seja justamente essa a principal mensagem da série: que todos têm o direito de escrever sua própria narrativa, com todas as letras e nuances que lhes cabem.
Num mundo cada vez mais polarizado, Anne with an E oferece um antídoto feito de gentileza combativa e empatia ativa. Sua força está em lembrar que até os campos mais silenciosos podem abrigar revoluções — desde que haja espaço para sonhar, pertencer e crescer.