E se a maconha fosse legalizada no Brasil? Pico da Neblina, série original da HBO, parte dessa hipótese para construir um drama social que é, ao mesmo tempo, exercício de ficção especulativa e radiografia das desigualdades históricas do país. Com duas temporadas e vinte episódios, a produção acompanha Biriba, um jovem ex-traficante da periferia de São Paulo, em sua tentativa de entrar no mercado legal — e deixar o crime para trás.
Longe de oferecer respostas fáceis, a série escancara o abismo entre a promessa do “mercado verde” e a realidade de um país onde a cor da pele, o CEP e o passado criminalizado ainda ditam quem pode ou não empreender. Sob a direção de Quico Meirelles e produção da O2 Filmes, Pico da Neblina combina uma linguagem realista, trilha sonora pulsante e atuações densas para retratar um Brasil reconhecível — mesmo no futuro.
Legalizado, mas não liberado
O ponto de partida da trama é provocador: o Brasil finalmente legalizou a cannabis. No entanto, o novo marco regulatório ainda carrega vícios de origem. Enquanto empresários brancos e bem-nascidos abrem cafés gourmets com produtos derivados da planta, jovens negros da periferia enfrentam dificuldades para formalizar negócios — e, muitas vezes, são os únicos que conhecem de fato a cadeia produtiva do “produto”.
A trajetória de Biriba e seu sócio Vini, na criação da loja “Oficina da Neblina”, revela as armadilhas do empreendedorismo num contexto desigual: burocracia, preconceito e a constante vigilância de instituições que seguem tratando a periferia com desconfiança. O dilema moral do protagonista — entre continuar limpo ou ceder às pressões do tráfico — escancara a fragilidade das mudanças quando a estrutura social permanece inalterada.
Memórias que não se apagam
Na segunda temporada, a narrativa ganha contornos mais intensos com a ascensão de CD, novo chefe do crime organizado, que toma o controle das operações e ameaça reabsorver Biriba ao mundo ilegal. O embate entre os dois não é apenas pessoal, mas simbólico: representa o conflito entre duas economias que coexistem — uma regulada e outra informal, ambas operando sob lógicas de exclusão e sobrevivência.
O cenário urbano da série — dividido entre a quebrada, o centro financeiro e os ambientes sofisticados da “cannabis legal” — evidencia um Brasil partido. A fotografia em tons esverdeados e acinzentados, aliada à câmera de mão e à trilha sonora de rap e funk, reforça o contraste entre as promessas modernas do capital e a crueza das origens de seus protagonistas.
Mercado ou justiça?
Pico da Neblina não se limita ao drama individual. A série atua como laboratório de reflexão sobre políticas públicas, justiça social e economia criativa. Quem são os verdadeiros beneficiários da legalização? O que significa “inclusão” num sistema que ainda criminaliza corpos e territórios específicos? Essas são algumas das perguntas que ecoam ao longo dos episódios — e que encontram ressonância nas agendas globais de redução das desigualdades, promoção da saúde e fortalecimento institucional.
No centro de tudo está a cannabis: ora como mercadoria, ora como memória de violência, ora como símbolo de transformação. Mas a planta, sozinha, não muda estruturas. Como indica a própria série, a legalização sem reparação histórica e redistribuição real de oportunidades pode apenas maquiar a exclusão — e reforçar os mecanismos que sempre definiram quem pode sonhar… e quem permanece na neblina.