A provocação é imediata em Pobres Criaturas, filme de Yorgos Lanthimos baseado no romance homônimo de Alasdair Gray. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, o longa transporta o espectador a uma Europa industrializada e desigual, onde ciência, moralidade e poder se entrelaçam para preservar antigos privilégios — e onde a protagonista encarna uma ameaça viva a esse status quo.
Um corpo que desafia convenções
Bella Baxter (vivida por Emma Stone em uma atuação visceral) nasce duas vezes: primeiro como vítima de uma sociedade sufocante, depois como criatura de um experimento científico radical. Ao rejeitar as normas impostas sobre sua anatomia e sexualidade, Bella transforma o corpo — tradicionalmente domínio de controle masculino — em instrumento de autonomia e subversão. Sua liberdade, tão física quanto intelectual, perturba os alicerces de uma época em que a mulher era vista como propriedade moral e médica.
O controle sobre corpos femininos — tema tristemente atual — é dramatizado de forma crua e elegante, reforçado pela estética gótica-pop que permeia o filme. Lanthimos cria um universo onde a nudez não é escândalo, mas sim política: um manifesto silencioso pela libertação dos corpos e das mentes.
Entre máquinas, ciência e exploração
A figura de Godwin Baxter (Willem Dafoe), o cientista deformado que ressuscita Bella, personifica a ciência ambivalente do século XIX: ao mesmo tempo emancipadora e dominadora. Se por um lado oferece a ela uma nova existência, por outro a molda de acordo com suas concepções paternalistas. Surge assim o dilema: até que ponto o “progresso” é realmente libertador para aqueles sobre quem é exercido?
O filme propõe uma reflexão crítica sobre práticas médicas e científicas que, sob a justificativa da inovação, frequentemente ignoram a dignidade individual — discussão que ecoa debates contemporâneos sobre direitos sexuais, reprodutivos e bioéticos.
Viagens pelo abismo das desigualdades
Quando Bella se aventura pelas cidades de Londres, Paris, Lisboa e Alexandria, suas descobertas não são apenas geográficas. Cada parada revela abismos sociais cavados pela industrialização e pelo colonialismo. Enquanto advogados como Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) circulam com pompa pelas altas rodas, trabalhadores e prostitutas sobrevivem nas margens da modernidade triunfante.
A jornada de Bella desnuda as estruturas de classe: uma aristocracia que se diz progressista, mas que perpetua desigualdades brutais. Sem concessões, o filme evidencia como o luxo de poucos depende da invisibilização de muitos — realidade que atravessa séculos e fronteiras.
Criaturas que desmascaram a sociedade
Inspirando-se na tradição gótica inaugurada por Frankenstein, Pobres Criaturas reconstrói o mito da “criatura” à sua maneira. Em vez de um monstro temido, Bella é o espelho de uma sociedade hipócrita, expondo suas contradições mais profundas. Ao se recusar a ser objeto de piedade ou controle, ela redefine o que significa ser humano em um mundo que insiste em desumanizar.
Max McCandless (Ramy Youssef), médico idealista que cruza o caminho de Bella, oferece um contraponto de esperança: a possibilidade de um olhar que reconhece, acolhe e aprende, em vez de subjugar. Em suas relações, o filme vislumbra alternativas a um sistema fundado na dominação.
Reflexões urgentes em tempos modernos
Apesar de ambientado no século XIX, Pobres Criaturas dialoga poderosamente com desafios contemporâneos. Em uma era marcada por retrocessos nos direitos civis, ameaças à autonomia corporal e crescentes desigualdades econômicas, a história de Bella ressoa como um chamado à resistência e à reinvenção.
Mais do que uma fábula gótica ou uma sátira mordaz, o filme de Lanthimos propõe um exercício de imaginação ética: como seriam nossas sociedades se rompêssemos com as hierarquias que naturalizamos? Que novos corpos políticos e afetivos poderíamos criar?
Sem didatismos, Pobres Criaturas entrega uma obra exuberante, inquietante e, sobretudo, necessária — uma ode às múltiplas formas de insurgência contra as amarras do velho mundo.