No auge da Guerra Fria, entre armas, laboratórios e silêncios forçados, uma faxineira muda encontra, em uma criatura aprisionada, aquilo que faltava no mundo ao seu redor: escuta, afeto e liberdade. A Forma da Água, dirigido por Guillermo del Toro, é um conto moderno que transforma o que parece marginal em protagonista, e o que parece monstruoso em possibilidade de redenção.
Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2018, o longa ambientado na Baltimore de 1962 navega entre fantasia e crítica social, sem perder a ternura nem a contundência. Com estética vibrante e narrativa simbólica, a obra mergulha em temas como exclusão, poder e desejo – onde os silenciados finalmente encontram voz.
Monstros, margens e o poder do olhar sensível
Elisa Esposito (Sally Hawkins), muda desde a infância, trabalha como faxineira em uma instalação secreta do governo. Sua rotina silenciosa ganha novo sentido quando ela conhece uma criatura anfíbia, mantida em cativeiro por fins militares. O elo entre os dois cresce em gestos, músicas e olhares — um tipo de linguagem que escapa às normas, mas comunica tudo o que importa.
Enquanto a comunicação não-verbal se revela mais poderosa do que qualquer discurso, o filme constrói um mosaico de personagens marginalizados: Zelda (Octavia Spencer), colega negra que enfrenta racismo e misoginia cotidianamente; Giles (Richard Jenkins), vizinho gay que carrega a solidão imposta pela intolerância; e a própria criatura, vista como ameaça por não se encaixar no que o sistema considera humano.
Del Toro inverte a lógica tradicional dos contos e dos filmes de terror: aqui, o verdadeiro “monstro” veste terno, comanda experimentos, impõe medo e busca destruir o que não compreende. Interpretado por Michael Shannon, o coronel Richard Strickland encarna a violência normativa, aquela que julga, classifica e descarta.
A água como metáfora e resistência
Se a criatura é água, Elisa também a é: fluida, adaptável, mas profundamente intensa. A simbologia aquática atravessa o filme como fio condutor — elemento de transformação, erotismo, cura e revolta. A água inunda cozinhas, sonhos, e até mesmo a violência que tenta conter o amor. O que era prisão vira abrigo; o que era silêncio vira canção.
A estética do filme reforça essa imersão sensorial: tons de esmeralda dominam a tela, a trilha sonora de Alexandre Desplat pulsa como maré emocional, e os gestos delicados de Elisa provam que o sentir pode ser mais eloquente que o falar. É uma linguagem cinematográfica que escapa da superfície e convida o espectador a mergulhar fundo.
Narrativa fantástica, realidade brutal
Apesar da ambientação onírica, A Forma da Água fala diretamente com o presente. Ao construir sua história sobre corpos que o sistema tenta apagar — por deficiência, cor, sexualidade ou origem —, o filme não apenas denuncia exclusões históricas como propõe um outro futuro: mais sensível, justo e plural.
A presença de uma protagonista com deficiência, de uma mulher negra articulada e de um homem gay solitário não é só representação — é subversão de um modelo narrativo que sempre os relegou à margem. O mesmo vale para a criatura, cujas origens amazônicas ecoam debates contemporâneos sobre o respeito à diversidade biológica e cultural.
E quando Elisa decide salvá-lo, ela não só desafia o aparato militar que o explora, mas também transforma a si mesma: de espectadora do mundo para agente de mudança. É nesse gesto — íntimo, político e poético — que reside o coração da trama.
Educar pelo encantamento
Mais do que um romance inusitado, A Forma da Água é um convite pedagógico. Pode ser usada em sala de aula para discutir inclusão, ética científica, linguagem não-verbal e interseccionalidade. Também levanta questões sobre quem rotulamos como “anormal”, como construímos o medo do outro e o que define a fronteira entre humano e monstruoso.
A obra ainda inspira práticas educativas criativas: oficinas de storyboard sensorial, debates sobre alteridade e atividades que traduzam emoção sem palavras. Nesse sentido, o filme vai além da tela e propõe um outro modo de ver — e de sentir — o mundo.
Entre silêncios e canções: o poder de amar o impossível
“Em um mundo de muros secos, amar é aprender a respirar sob a água.” Com essa metáfora, A Forma da Água reafirma que o maior risco não está em se conectar com o diferente — e sim em deixar-se endurecer pelo medo. Ao dissolver as fronteiras entre humano e criatura, entre o que é permitido e o que é sentido, o filme nos lembra que a verdadeira humanidade pulsa nas rachaduras, nos gestos gentis, nas histórias que ousam fluir contra a corrente.